O último beijo de Irinéia
Sentada em uma cadeira do tipo balaio na varanda da casa onde viveu por mais de 40 anos com seu esposo Antônio, a ceramista Irinéia Rosa Nunes da Silva tem o olhar fixo em algum lugar distante, como se esperasse o marido voltar. Quem passa pelo portão com muro baixo, revestido com cerâmica em tons terrosos e formas geométricas, logo encontra essa figura maternal, com seu lencinho vermelho na cabeça e vincos na pele que remetem aos caminhos percorridos ao longo dos seus 79 anos.
Seu grande amor, Antônio Nunes, de 80 anos, não está ao seu lado. Ele já não a acompanha à igreja aos fins de semana como fazia sempre ou a ajuda com o forno que finaliza suas peças. Já não se ouve a voz do marido ou o arrastar dos chinelos ecoando pela casa desde dezembro de 2020, quando o companheiro e melhor amigo faleceu por complicações cardíacas causadas pela Covid-19. Os frutos desse amor, no entanto, seguem vivos até hoje e ajudam Irinéia a seguir em frente. “O barro me cura. Ele me ajuda a não desistir”, diz a ceramista.

O que muita gente não sabe é que “O Beijo”, uma das peças mais conhecidas do casal, foi criada por Antônio em homenagem ao amor por Irinéia.
A universitária Mauricéia Nunes, filha do casal, conta que anos atrás, um amigo da família chegava à casa dos pais dizendo: “Eita, seu Antônio… hoje vai ter beijo. Vou botar vocês pra namorar.” Isso deixava Irinéia sem graça, porque, de vez em quando, dizia ao marido que não gostava de beijar. “Nesse vai e vem, o pai aproveitava a oportunidade para roubar um selinho. Era esperto”, relembra Mauricéia, sorrindo.
O amigo que provocava o casal é o reitor da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal), Jairo Campos, que frequentou o povoado Muquém por anos com o objetivo de catalogar, registrar e divulgar academicamente a memória e a cultura quilombola.

História
Localizada no município de União dos Palmares, Zona da Mata alagoana, a Comunidade Quilombola Muquém tem profunda importância histórica e cultural por ter sido formada próxima à Serra da Barriga, por descendentes de pessoas que fugiram do Quilombo dos Palmares após sua destruição em 1694.
Durante o período pós-abolição, muitas comunidades enfrentaram dificuldades para garantir direitos sobre a terra e sobreviver com autonomia. O Muquém conseguiu manter vivas as tradições culturais, religiosas e econômicas dos antigos quilombolas, com forte presença da cerâmica, da agricultura e da oralidade como formas de preservação da memória.
No povoado, o barro não é só terra: é memória moldada por mãos ancestrais. É morada, sustento e arte. A partir dele, a história dos quilombolas ganha forma, resistindo ao tempo como as raízes do Baobá Rei que sobreviveu ao massacre no quilombo e nunca se deixou arrancar.

Filhos desta terra cheia de simbolismos, Irinéia e Antônio foram criados lado a lado na infância na década de 1950, mas separados com o passar do tempo. Anos depois se reencontraram: ele viúvo com 6 filhos e ela recém-chegada de Juazeiro do Norte, com seus 4 filhos. Nesse reencontro, já transformados pelas experiências da vida, perceberam que eram feitos do mesmo barro.
Ao retornar para o Muquém, Irinéia foi trabalhar como cortadora de cana, mesma função de Antônio, até engravidar. Com a gestação, ela passou a ajudar a mãe, dona Maria da Conceição, a fazer raspagens nas panelas de barro, em casa. Foi o primeiro contato que a artista teve com a matéria-prima.
Pioneirismo
Entre uma panela e outra, chegavam pedidos de vizinhos e conhecidos para que Irinéia fizesse peças que simbolizassem partes do corpo humano. Essas peças eram usadas para pagar promessas. “A parte do corpo que o fiel alcançava a cura era transformada em uma peça de barro e deixada no altar, em agradecimento”, explica Mauricéia.

Depois de esculpir uma cabeça para uma devota que sofria muito com dores e, ao alcançar a graça de se livrar delas, Irinéia começou a desenvolver suas primeiras obras autorais e criou uma identidade própria a partir das cabeças. Santa Luzia, Padre Cícero, passarinhos… tudo que lhe vinha à mente ganhava forma no barro.
Já na década de 1990, o Muquém passou a ser visitado por projetos sociais e foi contemplado por iniciativas que envolviam a profissionalização de seus moradores. Uma das ações, promovida pelo Sebrae, acendeu o interesse de Irinéia que aproveitou a oportunidade e aperfeiçoou sua técnica, aprendendo a usar um forno para queimar suas peças.
Um morador do Muquém teve a ideia de levar algumas obras da ceramista para expor em uma feirinha de arte popular, no histórico bairro de Jaraguá, na capital. Assim, aos poucos, as peças quilombolas foram se espalhando e o trabalho da artista Irinéia sendo conhecido tanto pelos moradores como por quem visitava Maceió.
Inicialmente, Antônio ficava com a extração do barro, com a queima e a manutenção do forno que ele mesmo construiu, nos fundos de casa. Com o passar do tempo e observando a lida da esposa, passou a ajudá-la no acabamento das cabeças.

Unidos pelo barro
Nos anos 2000, quando se aposentou do trabalho no campo, Antônio passou por momentos melancólicos. “E agora, véia? O que vamos fazer?” Irinéia não deixou o marido desanimar. “Senta aqui, véio. Vamos pro barro!” E ele aceitou. E os dois passaram a viver cada vez mais juntos. “Se fosse para plantar, eles iam juntos, se fossem para o barro, também. Eram muito unidos e viviam em função da família”, relembra Mauricéia.
Em 2005, Irinéia foi consagrada Mestra artesã do Patrimônio Vivo de Alagoas. Juntos, ela e Antônio criaram peças que fazem parte do acervo de museus e coleções de arte popular dentro e fora de Alagoas, como símbolo de preservação da memória afro-brasileira. “A tradição da comunidade eram as panelas, mas Irinéia trouxe a arte em si e segue sendo a única moradora – junto com sua família – a criar obras de arte popular”, explicou Jairo Campos.
O governador à época, Renan Filho, recebeu uma obra “O Beijo” de presente e decidiu que criar uma réplica da peça com 10 metros de altura, representando o movimento Alagoas Feito à Mão, apoiado pelo governo do Estado. Essa peça segue exposta na praia da Jatiúca, em Maceió.
Árvore da Vida
As esculturas de Dona Irinéia não são apenas peças decorativas. Através do barro, ela conta a história de seu povo, suas dores e sua força para continuar existindo, mesmo diante das dificuldades. Um belo exemplo criado pela ceramista é a peça “Árvore da Vida”, que simboliza o desespero de quando ela e mais 40 pessoas se abrigaram nos galhos de uma mangueira durante a grande cheia que atingiu Alagoas em 2010. União dos Palmares foi um dos municípios mais devastados pelas enchentes, por ficar às margens do rio Mundaú.

Museu
A partir dos estudos realizados por anos na comunidade, Jairo Campos conseguiu criar um museu no campus da Uneal de União dos Palmares, que abriga peças e registros tanto da comunidade quilombola quanto dos povos indígenas que habitavam terras alagoanas desde antes das primeiras invasões territoriais. Irinéia tem destaque especial neste museu.

Essas invasões, que marcaram o processo de colonização, afetaram profundamente as populações indígenas e quilombolas, e os registros de Jairo são uma forma de preservar e dar visibilidade a essas histórias de resistência.
O último beijo de Antônio
A criação de O Beijo deu a Antônio o status de patrimônio cultural vivo de Alagoas. A partir daí, a obra caiu no gosto dos apreciadores de arte. E como se fossem um só, o casal passou a fazer mais e mais Beijos. Versões homoafetivas passaram a ser produzidas e com máscara para os tempos de pandemia.

“O mais interessante é que para cada peça há um traço de ancestralidade, uma releitura anatômica da própria Irinéia nasce de suas mãos. O espeto, a faca com o fio gasto, o bambu, as próprias unhas para traçar os cabelos… tudo forma uma arte autoral e autobiográfica”, explicou Jairo Campos.
Dona Irinéia tornou-se uma das ceramistas mais reconhecidas do Brasil e uma grande representante da Comunidade Quilombola Muquém. E Antônio sempre se manteve ao seu lado, até o fim. Após o falecimento do marido, a quilombola ainda perdeu uma das filhas para o câncer de mama, o que a deixou triste e, por algum tempo, sem ânimo.

Unindo mãos
A família de Irinéia se uniu para ajudá-la a superar as perdas e dores. Outra filha do casal, Monica, passou a auxiliar na moldagem das peças, enquanto seu marido cuida da queima e da manutenção do forno – que precisa ser substituído por um modelo elétrico, mas ainda faltam recursos. Dona Heroína, irmã da ceramista, também contribui com o trabalho.
Todas as filhas vivem em União, perto da mãe. Mauricéia mora ao lado. ‘Ela passa o dia na casa deles, que agora funciona mais como ateliê, e, ao anoitecer, vem para cá e dorme com a gente’, contou. Ela e as irmãs, Claudia e Auricéia, cursam Pedagogia Quilombola na Uneal e planejam seguir dando aulas para as crianças do povoado.
Irinéia, com sua força e talento, segue esculpindo o presente, enquanto Mauricéia, Mônica, Claudia e Auricéia, suas filhas, carregam consigo a missão de ensinar, perpetuar e fortalecer os laços da comunidade quilombola do Muquém.
No calor do barro e no olhar atento das novas gerações, a memória de Irinéia e Antônio continuará viva, como as raízes do Baobá Rei, que segue na Serra da Barriga, sem nunca se deixa arrancar.
Reconhecimento e Legado
- Registro como Patrimônio Vivo de Alagoas: Dona Irinéia foi reconhecida oficialmente pelo Estado como uma guardiã da cultura popular.
- Exposições Nacionais e Internacionais: Suas obras já foram expostas em diversos museus e galerias, como o Museu de Arte de São Paulo (MASP), o Museu de Arte Popular de Pernambuco e a Casa do Pontal, no Rio de Janeiro.
- Prêmio de Artesanato Brasileiro: Ela já recebeu prêmios que destacam sua importância como ceramista e artista popular.
- Inspiração para novas gerações: Muitos jovens da comunidade Muquém se inspiram no trabalho dela para continuar a tradição da cerâmica.
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Outras informações:
- 7.356 pessoas morreram vítimas de Covid-19 em Alagoas até janeiro de 2025. Destes óbitos, 107 foram em União dos Palmares. Fonte: https://covid.saude.gov.br/
- Peças de Mestra Irinéia são expostas no MASP: https://al.agenciasebrae.com.br/cultura-empreendedora/pecas-do-artesanato-de-alagoas-estao-sendo-expostas-e-vendidas-na-loja-do-masp/
- Escultura Árvore da Vida, de Mestra Irinéia, ganha audiodescrição: https://alagoas.al.gov.br/noticia/escultura-a-arvore-da-vida-da-mestra-irineia-ganha-audiodescricao
3 thoughts on “O último beijo de Irinéia”
Duas mulheres inspiradoras: Mestre Irinéia e Dayane Laet.
A história de uma vida tratada e contada de forma tão doce e leve. Parabéns ao Inspira e à Dayane Laet pelo tema tão importante para nós Alagoanos.
A encantadora magia que só a arte pode nos proporcionar. Parabéns pela sensibilidade e sutileza da escrita Day. 👏🏻👏🏻