Kariri-Xocó: A Sabedoria que cura e nasce do Velho Chico
[Todos os personagens entrevistados possuem nomes “brancos”, mas o Inspira decidiu manter seus nomes indígenas e seus significados]
No dia em que se comemora o Dia dos Povos Indígenas, o Inspira te convida a conhecer a aldeia Kariri-Xocó, localizada no município de Porto Real do Colégio, no Litoral Sul de Alagoas. Lá o ar carrega o perfume suave das ervas, enquanto as folhas secas estalam sob os pés ritmados e o canto profundo dos anciãos que participam do Toré (uma dança ritual), ecoando ao redor e parecendo acompanhar as batidas do coração. Cada movimento, cada palavra, cada gesto tem o peso do tempo, da ancestralidade e da relação sagrada com a natureza.
Naquela comunidade, onde o Rio São Francisco é chamado de Opará, a cura vai além do corpo — ela envolve o que muitos chamam de alma, a memória e o espírito coletivo.
Os Kariri-Xocó têm em sua cultura trabalhos de xamanismo, que incluem a cura com ervas medicinais, jurema e cantos nativos de cura. Mas quem chega à terra desses indígenas em busca de alívio não entra direto. Primeiro, é preciso pedir licença ao Opará. É às margens do Velho Chico que tudo começa. Ali, diante das águas, inicia-se um ritual de purificação.

Segurando o maracá (uma espécie de chocalho) e baforando uma xanduca (que lembra um cachimbo), mestre Wyranã (que significa Guerreiro da Terra) faz um cântico invocatório que mais parece uma prece. Em seguida, somos convidados a mergulhar e entregar corpo e mente ao silêncio do Opará.

Wyranã faz parte da sétima geração de uma família guardiã e se refere à natureza como “mãe”, enquanto nos fala sobre respeito. “Nossa Mãe é a ciência perfeita e d’Ela recebemos tudo. Vocês precisam entender que se isso não for respeitado, todos iremos desaparecer. As próximas gerações podem não viver o que estamos vivendo agora”, disse.
Só depois desse ritual de “iniciação” no rio seguimos de barco até a aldeia, onde somos acolhidos pelos indígenas com seus saberes e cantos nativos. Não entendemos quase nada do que é dito, mas sentimos tudo de bom que nos é apresentado. É energia recebida pelos sentidos, como um abraço.

Após uma refeição saborosa à base de peixe, saladas, feijão verde e frutas, somos convidados a participar de um Toré festivo. É um momento de celebração, em que os cantos e a força coletiva dos homens tomam conta do espaço. As anciãs, guardiãs de saberes antigos, chegam depois com delicadeza e firmeza. Quando todos estão juntos, os visitantes também são chamados para a roda e cada pessoa vive ali um instante único de reconexão, recebendo, mesmo sem perceber, um convite à cura interior.
A servidora pública Jordane Gomes conta que a experiência na comunidade foi de renovação. “A licença que pedimos para entrar nas águas do São Francisco e os rituais iniciados por Wyranã permitiram um encontro comigo mesma e o início de uma cura interior”, relembra. “Foram momentos inspiradores, desde o repartir dos alimentos, o deitar nas redes, receber as pinturas sagradas, dançar o Toré e ser abençoada pelos líderes espirituais. Foram momentos únicos que ecoam até hoje na minha memória”.
Raízes e recomeços
O povo Kariri-Xocó carrega em sua origem a força do encontro. Eles são descendentes da união entre os Kariri, que habitavam a região de Porto Real e os Xocó, que vieram da ilha sergipana de São Pedro há cerca de cem anos.
A travessia dos Xocó aconteceu após a extinção das aldeias, promovida por políticas do império. Perseguidos e sem chão, buscaram abrigo do outro lado do Opará, onde foram acolhidos pelos Kariri.
Hoje, segundo a presidente do Instituto Indígena Além do Tempo Kariri-Xocó, Tekayane (Menina do Rio), a comunidade é formada por cerca de 5 mil pessoas, a maioria vivendo em casas de alvenaria próximas à área urbana de Porto Real do Colégio.
Segredos sagrados
Dois rituais têm papel central na espiritualidade e na identidade dos Kariri-Xocó: o Ouricuri e o Toré. O Ouricuri acontece anualmente, em janeiro. É um tempo de recolhimento e reconexão, em que toda a aldeia se reúne para reforçar seus vínculos com os encantados, os ancestrais e a própria cultura.
Durante o ritual, são entoados cantos e feitas danças que acompanham a ingestão do vinho da jurema — bebida sagrada preparada a partir da raiz da árvore de mesmo nome. É nesse momento que o corpo se aquieta e o espírito se amplia. Os indígenas descrevem o transe provocado pela jurema como um estado de comunhão com o invisível, onde passado, presente e futuro se misturam.

O Toré, por sua vez, se divide em dois modos de expressão. O chamado toré de roupa é mais festivo, dançado em ocasiões cotidianas, com roupas comuns. Já o toré de búzios, mais ritualizado, carrega o mistério do Ouricuri. Evocado com o som grave de instrumentos sagrados, ele toca camadas mais profundas da espiritualidade do povo. Veja uma apresentação de Toré clicando aqui.

Educação: o maracá mais importante
A principal fonte de renda da aldeia é o artesanato, mas a estudar também tem um lugar de honra entre os Kariri-Xocó. Em fevereiro de 2024, foi inaugurada dentro da aldeia a Escola Estadual Indígena Pajé Francisco Queiroz Suíra, com capacidade para 650 alunos. A escola foi fruto de uma luta antiga por um espaço onde o saber tradicional caminhasse junto com o conhecimento formal. “É uma maneira de aprender e preservar as línguas, os costumes, a relação com a terra e com nossa origem”, explicou Tekayane.

A estudante de Serviço Social, Gercina (Estrela do Mar), de 23 anos, conta que iniciar a vida acadêmica foi um desafio. “No começo sofri preconceito, olhares vazios e curiosos, mas depois encontrei apoio de alguns colegas e construí uma trajetória acadêmica que me orgulho”, relembra. “Agora, pretendo colocar em prática tudo que aprendi, garantido e defendendo os direitos da minha comunidade”.

Ao final da visita, é impossível sair da aldeia sem sentir que algo dentro de nós também mudou. Não apenas pelas palavras ou pelos rituais, mas pela firmeza serena de um povo que transforma tradição em caminho.
Nas margens do Opará, onde tudo começa, também aprendemos a recomeçar. E a cura, como eles ensinam, não está só nas ervas ou nos cantos — mas no olhar que se volta para dentro, na escuta do que veio antes de nós e no respeito à terra que sustenta todos os passos.
Veja mais imagens:
Mais:
- Documentário “Kariri Xocó – Toré / Rojão” : barca.com.br/kariri-xocobarca.com.br
- Site oficial da etnia: kayrrakaririxoco.com.br
- Povos Indígenas do Brasil: https://pib.socioambiental.org/pt/P%C3%A1gina_principal
One thought on “Kariri-Xocó: A Sabedoria que cura e nasce do Velho Chico”
Ler o seu texto Day, reforçou em mim a vontade de olhar de perto, me dispor a colocar os pés no rio, Opará, a entender e sentir sobre novos caminhos geográficos e internos (autoconhecimento) a serem percorridos e principalmente me apropriar das nossas histórias, da nossa gente.