14 de junho de 2025

Entre a descrença e o doutorado, uma ladeira chamada persistência

Quando Luís Carlos Ferreira de Oliveira, 35 anos, chega a um ambiente, a risada vem primeiro. É impossível não notá-lo — pela alegria que irradia e pelo tanto que conversa. Se não encontra um amigo, faz amizade ali mesmo, na hora.

Mas a história do agora doutor e professor do Instituto Federal de Alagoas (Ifal), unidade Marechal Deodoro, é marcada por algo bem menos leve do que seu sorriso: um fermento amargo chamado descrença. Quanto mais diziam que ele não conseguiria, mais ele persistia no objetivo de ser o primeiro da família a cursar uma Universidade Federal.

E pasmem: mesmo depois da conquista, as palavras de desânimo continuaram. “Não sei pra quê filho de pobre na faculdade”, ouviu de um tio, em 2005, quando foi aprovado no curso de Química da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

Luís nasceu em Capela, em 1984. Filho único de Luciete e Cosme, mudou-se com os pais aos sete anos para o Vale do Reginaldo, em Maceió, depois que o pai perdeu o emprego em uma usina. Encantado com a “cidade grande”, o menino logo teve de lidar com desafios do mesmo tamanho.

Durante a quadra chuvosa de 1991, uma forte tempestade provocou deslizamentos em várias áreas de risco da capital, incluindo o Reginaldo. A família de Luís perdeu a casa e precisou se abrigar com parentes em uma casa alugada no Jacintinho. Foi numa escola do bairro que ele viveu os primeiros episódios de racismo disfarçados de brincadeiras. “Na época, eu nem entendia o que estava acontecendo e tentava não me abalar com as piadas sem graça”, relembra.

Depois de repetir o quinto ano, por causa de uma greve nas escolas estaduais, dona Luciete tomou uma decisão: começou a trabalhar como doméstica para pagar uma escola particular para o filho. “Ela brigou com meu pai e enfrentou anos de trabalho para me manter ali. Aquilo, pra mim, não teve preço. Até hoje me emociono ao lembrar”, conta Luís. “Só saí dessa escola quando fui pro Cepa, onde cursei todo o ensino médio.” No Colégio Afrânio Lages, que fazia parte do Centro Educacional de Pesquisa Aplicada, o Cepa, o bullying ficou ainda mais pesado. “Sofri muito, mas isso acabou virando combustível pra eu continuar.”

Mesmo com afinidade pelas ciências exatas, Luís tinha dificuldades com os conteúdos. “Ganhei uma bolsa de aulas isoladas de Física num sorteio, mas a própria professora da disciplina disse que eu não era bom o suficiente”, lembra. “Mesmo assim, fui. As aulas eram à noite, e eu não fazia ideia de como daria conta.”

Dr. Luís Carlos nos tempos de longas caminhadas entre o Vale do Reginaldo e o Cepa (Arquivo Pessoal)

Uma ladeira no caminho

O período mais difícil foi quando ele estudava de manhã no Afrânio, voltava correndo para casa para cuidar do irmão caçula e depois seguia pro  Cepa, onde tinha aulas à noite. “Ia a pé do Jacintinho até o colégio todo santo dia. No fim da Rua Triunfo tem a Ladeira do Galo, bem íngreme. Descia por ela e subia de novo por outro lado, até chegar na Praça Centenário”, lembra, com a voz embargada. “Aquelas caminhadas me marcaram. O esforço era enorme. Eu mal tinha dinheiro e quase não me alimentava direito.”

A primeira tentativa de entrar no curso de Física não deu certo. Desistir? Nem passou pela cabeça.

Aos 18 anos, o pai passou a cobrar que ele arranjasse um emprego. Mais uma vez, dona Luciete interveio e garantiu que o investimento no filho valeria a pena. Com uma mesada de R$ 30, Luís investiu R$ 20 em matérias isoladas num cursinho popular no Centro. Seis meses depois, surgiu um novo preparatório de incentivo à docência, bem simples, na Feirinha do Jacintinho. Por R$ 25, ele poderia estudar todas as disciplinas. Foi aí que entendeu que a Química reunia justamente as duas matérias de que mais gostava: Matemática e Física. E resolveu arriscar.

Luís ficou entre os cinco primeiros colocados no vestibular.

Na universidade, passou a ouvir frases como: “sua cor não combina com esse curso” e “você tem dificuldade porque é da sua descendência”. Ele transformou o preconceito em combustível: mergulhou nos estudos, participou de tudo que pôde — palestras, imersões, minicursos. Nesse processo, conheceu sua orientadora de TCC, Simoni Margareti Plentz Meneghetti, que o apresentou ao laboratório de Química. “Eu só saía de lá pra dormir. Estava lá todos os dias, até em feriado como o Dia de Finados”, lembra, rindo.

A paixão por ensinar nasceu no terceiro ano do curso, quando começou a dar aula. Luís se formou em 2008 e, em 2010, foi aprovado no concurso do Ifal. No mesmo ano, ingressou no mestrado e no doutorado. “A vida não é fácil, mas escolhi encarar. Não sei de onde tirei tanta força — talvez do amor e da dedicação dos meus pais”, reflete. “Tudo o que conquistei foi por eles. O sentimento que me move hoje é gratidão e respeito por quem trabalhou tanto para que eu pudesse estudar.”

Dr. Luís durante viagem de férias a Dubai com o amigo Eduardo Moraes (Arquivo Pessoal)

Depois de ouvir a história do doutor Luís Carlos, a gente entende de onde vem sua alegria de viver. A vida dele se agigantou diante das tentativas de apagamento que sofreu. “Sempre digo para os meus alunos: tudo é possível com disciplina. Quero semear esperança, e não descrença. Quero que contem comigo e lembrem da minha história como um exemplo. Nunca vou permitir que alguém diga que eles não são bons o bastante. Eles vão ser o que quiserem ser.”

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