Qual o sentido dos sonhos?

Eu parei de ouvir música.

Eu parei de ouvir música porque as que antes me causavam emoção, começaram a incomodar feito furadeira na casa do vizinho em manhãs de sábado. Passei a ficar irritada até com o som que o tênis fazia durante minhas caminhadas, com o farfalhar das cortinas do meu quarto, enquanto o vento cumpria seu papel.

Eu parei de ouvir as músicas que um dia me fizeram fechar os olhos e flutuar por lugares onde nunca estive, e senti que parte da minha identidade estava sendo guardada em alguma gaveta sem puxador. Decidi usar fones, mas para ouvir o que? Enjoei dos podcasts habituais e a voz pausada da minha narradora preferida me fazia ter a sensação de perda de tempo. Estava acelerada e nem percebia que me tornava, gradativamente, um animal em sofrimento.

Meu novo incômodo me faz notar os passos de minha mãe pela casa e os episódios de tosse dela, que antes passavam despercebidos. A dobradiça da porta do armário na cozinha, a panela que desencaixo de dentro de outra maior para cozinhar. O teclado no qual trabalho. O sacolejo da carrocinha acoplada à moto do condomínio que recolhe o lixo. Tudo passou a me incomodar.

Resolvo sair de casa. Quando o motor do carro começou a fazer esse ruído? No rádio, que liga toda vez que a chave toca na ignição, as últimas notícias do… Desligo.

Paro na padaria. Pratos, talheres e xícaras formam uma orquestra desarmonizada durante o café da manhã. Por que as pessoas conversam tão alto em ambientes fechados? Vejo sonhos na vitrine. Aquele pãozinho doce recheado com creme de baunilha e coberto de açúcar geralmente me fazia esquecer dos problemas. É paixão de infância.

Me recordo que lá pelos quatro anos, passei uma manhã na cidade de Suzano (SP). Fazia muito frio e chovia. Enquanto esperávamos a garoa dar uma trégua na saída da estação de trem, minha mãe viu um carrinho desses que costumam ter pipoca, mas que vendia sonhos quentinhos, feitos na hora. O meu veio enrolado pela metade num papel branco, pouco aderente, e cheirava levemente à canela. Foi o melhor que comi até hoje.

Vou levar um para casa, penso. Também peço quatro pães franceses. Ouço a atendente abrir a porta do compartimento e retirar meu doce. Fecha e pesa na balança que faz outro barulho. Etiqueta. Ela me entrega as encomendas com um sorriso cansado e eu, tentando disfarçar o incômodo, agradeço.

Fila. Enquanto tento me distrair no celular escuto a moça do caixa gritar PRÓXIMO! umas quatro vezes até que eu me apresento antes dela anunciar novamente que está livre. Pago, agradeço e sigo até a porta automática da entrada, que a range antes da gente chegar nela. Uma saudação enervante para quem entra ou sai.

No caminho de volta, o rádio anuncia a incrível música chiclete de 30 segundos da última semana com letra de coach 3M: machista, misógino & meritocrata. Desligo. Levo umas fechadas e ensaio xingar, mas a voz não sai. Respiro fundo. Ele, o silêncio, passou a ser um lugar estranhamente confortável pra mim.

Já em casa, mesa posta para o café da manhã acontecer às oito e meia em ponto. Olho para o sonho e decido aquecê-lo por dez segundos, para que a memória afetiva seja devidamente aguçada. Pós apito irritante do micro-ondas nos olhamos por alguns momentos e decido tirar um pedaço para provar. Corto, delicadamente, metade da metade. Mastigo por alguns segundos. Está bom, mas apenas isso. Nada de pupilas dilatadas.

Fico ali pensando nos meus sentidos entorpecidos pelo vazio e me lembro de Nietzsche dizendo que “quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você”.

O despertador me puxa de volta à realidade. Recolho o que não escoou pelo ralo e sigo para minha jornada de trabalho cinza, tentando lidar com expectativas inalcançáveis. Boto minha máscara.

Bom dia!

E sorrio.

Os sintomas da depressão nem sempre são claros. Se você perceber que algo não vai bem, busque ajuda.

One thought on “Qual o sentido dos sonhos?

Géssika Costasays:

Belo texto, Dayane. Era como se estivesse sentindo um pouco o que você falava. Me teletransportei para as situações. Poético, profundo, doce, amargo, delicioso, barulhento e também silencioso.

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